09 setembro, 2009

O Pião

Já passaram muitos anos. O meu irmão ainda me visita quase todos os dias.

Este meu irmão era o meu parceiro na infância. Eu era mais velho, cuidava dele. Ele estava protegido. Eu estava feliz.

Ele era muito despassarado!

Aluado, aluado, era uma criança que podia ir contra as paredes, que não dava por isso. Mas ele gostava de brincar, e apesar de ser a criança de cabeça na Lua que era, eu brincava sempre com ele. E como pessoa consciente que era, que sempre reflecti muito, às vezes pausava a brincadeira para observá-lo apenas, conhecer este meu irmão.

...

Ele tinha um Pião. Adorava-o! No dia em que a Mãe o trouxe, ele só soube brincar com ele...e brincou por semanas a fio com o Pião. Porém, um dia cansou-se desta sua fonte de felicidade, e isolou-se. Guardou o Pião na arca das memórias, e deixou-se de distracções. A única era eu.

Uma criança...sem brinquedos, só comigo, o seu irmão.

Mas era português, e até as crianças têm saudades. E passado uns tempos, apeteceu-lhe brincar com o Pião de novo. Não tanto, como outrora, mas brincava ainda muito...quando lhe dava na gana. Qualquer criança cansa-se rápido, no entanto, e lá guardou o Pião de novo. Em vez de buscar a solidão, desta vez arranjou berlindes. E gostou muito deles, e pedia-me sempre para brincar com eles! E depois arranjou uma bola de futebol! E estávamos sempre a jogar.

O meu irmão cansou-se de novo...e fez birra, que não queria berlindes, que não queria a bola de futebol. Queria o Pião! E foi buscá-lo à arca das memórias.

O Pião estava velho, tinha marcas. Se o Pião fosse gente, seriam cicatrizes. Mas rodava. Rodava sempre e o meu irmão ficava feliz por brincar com ele.

Era das únicas brincadeiras em que eu não entrava, a do Pião. Só no início de tudo, quando a Mãe o trouxe. Agora só via. E não me importava muito, porque não sou de me importar com essas coisas.

E o meu irmão brincava com o Pião, brincava, e dizia que queria ser sempre criança, para brincar sempre com ele.

De novo, fartou-se. De novo, chamou outros brinquedos, que a Mãe lhe trouxe rapidamente. E o Pião, o seu brinquedo incansável, foi guardado na arca das memórias.

...

Não sei se o meu irmão cresceu.

Se alguma deixou de brincar com os carrinhos que descobriu depois, com os bonecos que descobriu depois, com os berlindes antigos... Talvez tenha crescido, aquela criança que, de tempos a tempos, queria o Pião, que ficava tonto de tantas voltas que dava à mão daquela criança caprichosa.

...

Lembro-me daquele Pião...Um dia estava a abrir a arca das memórias. E já lá não estava. Passei por lá umas vezes sem conta, e nunca mais o vi. E provavelmente o meu irmão também foi lá, e não o encontrou. E quando lá fomos os dois, não estava lá.

Os Piões fogem, quando rodam demais. Talvez tenha arranjado um adulto que brincasse com ele todos os dias. Sem o fulgor da juventude do meu irmão, mas com a constância do brincar adulto.

Porque se a vida dos Piões é rodar, que ao menos rodem todos os dias.

Velho de Alfama

30 agosto, 2009

Para os portugueses

Escrevo este texto a todos vós, eleitores no próximo escrutínio para a Assembleia da República, no dia 27 de Setembro. Nos últimos tempos, e também de futuro, tomei e tomarei contacto com todas as informações dos vários partidos políticos portugueses. De todos os partidos que até ao momento publicaram os seus programas de governo, li cada um com extrema atenção, para que qualquer juízo não fosse falhado ou injusto. Este texto é uma dissertação, o máximo completa, sobre muitos aspectos que me parecem úteis que todos os portugueses conheçam e que poderão ajudar a tomar uma posição equilibrada e de acordo com as convicções de cada um acerca do que é e será melhor para o nosso país. Os ataques são dirigidos ao PSD; porém, todos os argumentos que vos apresentarei serão acompanhados da respectiva justificação.

Em primeiro lugar, preciso de frisar que sou a primeira pessoa a concordar que um mundo governado por mulheres seria um mundo melhor na maior parte das questões: as mulheres, no seu geral, possuem uma sensibilidade e uma intuição mais vastas do que os homens, em temas como o ambiente, a família ou as dificuldades financeiras de algumas camadas da sociedade. Para os defensores desta teoria, em primeira análise, a líder do PSD pareceria a melhor figura em quem depositar o voto de confiança. No entanto, trata-se de uma mulher que foge aos requisitos que anteriormente apresentei. Senão vejamos:

· Manuela Ferreira Leite mostrou-se já contra a lei que obriga a igual representação parlamentar entre homens e mulheres, considerando que o país não necessita de uma maior representatividade de mulheres nos seus órgãos de soberania;

· Ferreira Leite apresentou já o seu desagrado, assim como concorda com o veto de Cavaco Silva, no que respeita à lei das uniões de facto: uma família deve, na sua opinião, durar do casamento até à morte, sem que duas pessoas se possam simplesmente juntar numa vida a dois sem burocracias suplementares;

· Ferreira Leite discorda, igualmente, da nova lei do divórcio e do aborto: na sua opinião de “mulher”, os casais que pretendem a separação ainda devem estar sujeitos a batalhas judiciais para repartir os bens, sacrificando um laço de amizade que poderia manter-se após o divórcio e condenando os filhos do casal a um sofrimento que pode, com a nova lei, ser mitigado;

· Por último, a líder do PSD julga que o endividamento externo se resolve com a diminuição dos subsídios, nomeadamente de desemprego, agravando as condições de vida de cada vez mais portugueses e portuguesas, em vez de, por exemplo, apostar nas energias renováveis, as quais evitariam as importações avultadas de petróleo e gás natural.

Em resumo, Manuela Ferreira Leite julga possível pôr termo a uma crise económica instalando, no seu lugar, uma crise social. A qualquer um creio que isto não parece viável, ainda mais se nos apercebermos de que as grandes fortunas continuam a surgir em Portugal, pelo que o dinheiro para resolver a crise económica poderia partir daqueles que o têm e não daqueles que nem emprego têm.

Recordemos um episódio histórico e a sua resolução para melhor entendermos a situação mundial da actualidade. A crise económica que mais se aproximou, nos seus contornos, àquela que hoje se vive foi a crise que se seguiu à crise bolsista de 1929. O fecho de fábricas conduziu a uma maré de desemprego; o desemprego diminuiu a procura de bens de consumo; a quebra da procura resultou em fecho de fábricas: um ciclo de agravamento sem saída fácil. Surpreendido com a situação, o presidente dos Estados Unidos da altura empreendeu um conjunto de medidas como as que Ferreira Leite propõe: redução do papel do Estado na economia, através da quebra dos subsídios, privatizações, assim como a suspensão das obras públicas em projecto. Na verdade, estas medidas conduziram a uma crise ainda mais profunda: a população americana viu-se desprovida dos apoios e das condições para sair da crise, o país viu-se a braços com uma enorme dificuldade de criar novos empregos e aumentar as produções, enquanto o Estado, cada vez menos interventivo, ia arrecadando dinheiro que para nada servia enquanto estivesse parado. O país parou: não havia dinheiro e, onde o havia, este não era movimentado. Ora, esta situação contornou-se apenas com a subida ao poder do presidente Roosevelt, que dirigiu medidas de nacionalizações, subsídios aos carenciados, a novas empresas, e também iniciou um regime de obras públicas que absorvia emprego e incentivava diversos motores da economia, ao mesmo tempo que criava as condições e infra-estruturas para maior crescimento económico no futuro, como se veio a verificar. Portanto, parece que só sairemos sãos desta crise mundial com políticas de maior abertura e investimentos, como a esquerda portuguesa (BE, CDU e PS) defende, em vez de cortes abusivos no papel do Estado, privatizando sectores essenciais da economia que deveriam ser de todos e não pertença dos grandes grupos económicos: sectores como a energia, as águas, a segurança social, a saúde e a educação.

Não se deixem enganar: a fuga a alguma má medida e mau projecto do governo PS não está no voto no PSD: para alguma coisa existem cinco, ou mais, partidos em Portugal. Se discorda com o regime de avaliação dos professores, não precisa de votar PSD; se discorda com o TGV, não precisa de votar PSD; assim como se concorda com os apoios sociais, com o investimento público e com novas leis sociais, não tem de votar PS. Mais de 30 anos de governos alternados destes dois partidos deveriam ter servido para a consciencialização dos portugueses. Os governantes apenas aprenderão a lição do nosso desagrado no momento em que se aperceberem de que os dois partidos maiores da política portuguesa têm, nas eleições que se seguem, menos votos do que em quaisquer eleições que tenham decorrido até à data.

Aproveitando a onda, permitam-me completar o raciocínio em relação à Câmara Municipal de Lisboa. Três medidas que Santana Lopes promete implementar caso vença as eleições autárquicas:

· Suspensão dos programas de requalificação urbana dos bairros históricos, como Alfama, Mouraria, Bairro Alto, Castelo ou Mouraria): o buraco do centro de Lisboa, cada vez mais deserto e sem oportunidades, poderá, com Santana Lopes, ver-se eternizado, para desgosto de todos os portugueses que ainda esperam ver estes bairros recuperados e com a aura de séculos passados;

· Suspensão das obras do Terreiro do Paço. Estas obras, das mais úteis que têm existido no nosso país, vêm fazer com que os esgotos de centenas de milhares de lisboetas não vão parar ao rio Tejo sem qualquer tratamento em ETAR’s. Santana Lopes promete cancelar estas obras, considerando-as inúteis e desestabilizadoras do trânsito na capital. Como se os automóveis fossem mais importantes do que o ambiente, numa cidade tão bem servida de transportes públicos como poucas outras na Europa;

· Por fim, construção de mais túneis para automóveis nas grandes avenidas de Lisboa. Lembram-se das obras do Marquês, de pouca utilidade, que sugou toneladas de euros de todos os portugueses e que contribuiu para o fecho de tantos negócios naquela zona de Lisboa… Pois bem, parece que, sob a alçada de uma administração Santana Lopes, vai poder reviver a sensação de uma Lisboa dos carros e endividada (ao mesmo tempo que alguém se sujeitará a levar com prédios de muitos séculos de idade na cabeça).

A decisão cabe a todos nós.
Camarada Fratírio Telmo

13 agosto, 2009

Matar o passado ou dar-lhe a mão

Esse tão insipente senhor da mais alta ambição política, de seu nome Santana Lopes, na actualidade um guerreiro empenhado na conquista e domínio eterno do lugar da presidência da nossa capital, prometeu-nos a todos já, no caso de vencer a tão aguardada eleição do poder local, esquecermos as esperanças trazidas ao longo dos anos e as quais víamos, nos tempos mais recentes, serem triunfadas para enorme alívio dos verdadeiros portugueses. Tudo em nome do problema central que o seu partido-cujo-nome-não-pode-pela-nossa-saúde-mental-ser-pronunciado tem tantas vezes evocado: o défice das contas públicas. Não me refiro ao geral das suas promessas absurdas e indignas de uma cidade como Lisboa, dona e senhora de uma imensidão de qualidades precisas e de problemas exactos que todos reconhecemos; refiro-me antes, e muito em particular, à questão sempre debatida da requalificação urbana.

A ninguém surpreende já a frustração dos bairros mais antigos da cidade de Lisboa: para a sentir e cheirar basta somente caminhar pelas ruas que herdámos da História. Evidentemente que, dependendo de cada sujeito individual, novas prioridades se sugerem: o caso muda de figura ao entendermos, muito facilmente, que uma personalidade da política não deve ser tomada por uma pessoa cujas convicções apresentam a mesma importância do que as das outras pessoas, pelo simples facto de que os políticos se sujeitam, no exercício das suas funções, a uma responsabilidade de que a generalidade das pessoas não sofre: aquele que vier a ser eleito presidente da autarquia lisboeta, imporá as suas ideias às pessoas que vivem na cidade, àquelas que usufruem da cidade e, importa nunca esquecer, à própria cidade, ao seu património e aos seus destinos. O centro da cidade de Lisboa morre a cada dia, morrendo consigo muito daquilo que é mais nosso. E, ao passo que Lisboa aumenta as funções em torno da segunda circular, ou em lugares dotados das mais modernas infraestruturas, como Benfica ou o Parque das Nações, a alma de Lisboa perde-se pela foz do Tejo, e aqueles que usam a cidade de Lisboa, usam-na hoje, em muitas das vezes, como qualquer europeu ou ocidental usa as suas cidades, e não tanto como um lisboeta usaria a Lisboa que é positivamente Lisboa.

É sabido que o Mundo se conduz com destino à homogeneidade sempre mais evidente: cada país se assemelha cada vez mais aos outros, partilhando ideias, culturas, línguas, instituições, moedas, e muito mais. E nesta cunjuntura, que considero alarmante em larga medida, as dissemelhanças que se mantêm entre os países continuam e continuarão a ser, e cada vez mais somente, as características do seu passado - o seu património e as suas tradições. O testemunho de que Lisboa é uma cidade portuguesa e a capital desse grande país é, e não pode ser outro, o ambiente dos bairros que Santana Lopes pretende arruinar. Por aqui se depreende, como encaixando peças de um enorme puzzle de complicações e dissimulações, o objectivo central das políticas e projectos daquele terrível partido (que deveria ser partido, do verbo partir): aproximar Portugal do mundo e da Europa com o auxílio das liberdades e vontades do liberalismo económico, fazendo dos portugueses meros cidadãos do mundo, os quais não devem ver em Portugal mais do que uma parte de um todo Mundo, igual a todas as outras ou ainda menor: menor porque se impõe erradicar-lhe as características que a tornam única.

Nesta questão está patente uma relevante marca cultural, pouco perceptível a muitos dos que leiam este texto - razão pela qual passo a descrevê-la. Necessitamos, para compreender esta marca cultural, de confrontar dois grupos de países: em primeiro lugar, reunimos Estados Unidos, Canadá, Escandinávia e Reino Unido, entre outros que agora pouco importam; em segundo lugar, reunimos os países do Sul da Europa (nos quais incluiremos o nosso) e os países ex-comunistas da Europa de Leste. O que, no que a este tema é remetido, distingue este dois grupos de países é o empenho da sua população na preservação do seu património histórico. Vejamos dois exemplos muito concretos: o centro da cidade de Nova Iorque (Manhattan) é onde predominam as construções mas modernas e altas de toda a cidade; em oposição, o centro de Lisboa é aquela zona da cidade ond se verificam construções mais antigas e com menos pisos, constrastando com zonas mais modernas e mais periféricas, como o Parque das Nações, Portela ou Telheiras. Concluímos assim que o primeiro grupo de países sempre deu prioridade à modernidade, condenando o património histórico: a cidade de Londres, que muitas vezes apelido de capital da Europa, é marcada pela persistência de monumentos históricos, palácios ou igrejas antigas, rodeadas de bairros modernos completamente equipados com tudo aquilo que a vida de hoje exige: os bairros históricos que encontramos em Portugal, Espanha, Itália e Europa de Leste, e até mesmo em França, não encontramos, porém, numa cidade tão ocidentalizada e americanizada como Londres. O Sul da Europa tende a preservar as zonas históricas intactas, mantendo todas as construções, no seu exterior, conforme elas foram edificadas. O Norte da Europa aceita a constante revitalização do centro das cidades através da substituição de construções mais antigas pelas construções mais modernas, conservando apenas os grandes espaços históricos de grande valor individual, como palácios, estátuas e edifícios religiosos. Ao lado deste texto coloco uma imagem da grande estação central de Nova Iorque, um testemunho de outros tempos, rodeada pelos mais modernos prédios. Anexo também uma imagem de um bairro histórico lisboeta onde verificamos a realidade contrária. Reforço então o que anteriorente afirmei: o intuito do horrível partido social democrata (que não é hoje social-democrata, mas sim liberalista) é aproximar Portugal dos Estados Unidos, mitigando aquilo que nos liga ao que sempre fomos com imenso orgulho. Se a sorte nos for avessa, em breve veremos irromper pelas alturas de Alfama uma grande torre de escritórios, com dezenas de pisos de estacionamento automóvel por baixo do solo, assim como as suas ruas, que sobreviveram ao terramoto de 1755, serão alargadas para o livre trânsito na cidade, destruindo todas as construções seculares que por nós são adoradas. E em breve, então, encontraremos um Rossio ladeado de edifícios de vidro, sendo que no centro se manterá sempre a estátua de um rei sobre uma enorme coluna, no futuro observando aquela cidade que já não consegue reconhecer.

A decisão de Lisboa permanecer, ao longos dos séculos, uma jóia intocada onde se reflecte o passado cabe aos lisboetas. Não deixem Lisboa desviar-se do seu caminho.
Camarada Fratírio Telmo

03 agosto, 2009

Em poucos segundos...

Porque me olhas assim? Quem és tu?


Larga-me! Porque me agarras?! Ai! Aleijas-me! PÁRA! Não tens o direito de… Ai, assim caiu! Não me beijes, que nojo!! Pára de… Não rasgues a… Larga as minhas m… Não! NÃO!!!!

AIII! Merda! Larga-me os pulsos… As minhas calças! Não! AII… Eu não queroooo!! Não!!! Deixa-me, não sou tua. Pára, por favor! POR FAVOR!!


Por favor…… Que acabe depressa. Que acabe depressa. Ai, Meu Deus, porquê?! PORQUÊ!! POR FAVOR QUE ACABE DEPRESSA! Por favor…… Quero voltar para a minha família… por favoorrrr!

Acabou… VAI-TE! Já tiveste o que querias! Já me tiveste a mim… Vai-te por favor! Deixa-me sozinha…

Sinto-me tão suja… Terá sido culpa minha? Só pode ter sido. Terei provocado isto? Eu cedi, deixei-o… Não podia fazer nada. Se tivesse mais tapada, se calhar… Odeio a minha roupa! Merda de roupa!! Se eu fosse mais forte, teria… AI, ODEIO-ME!! ODEIO-ME TANTOOO!!!!

Ai, que vergonha! Vá… Não se passou nada… NÃO OLHEM PARA MIM!! Que vergonha… Deixem-me! Não, não tenho nada. Não se passou nada! Não se passou nada…

Menina Violada

21 julho, 2009

O Arco-Iris

Houve uma altura na minha vida em que quis caminhar sobre o arco-iris. Sabia lá que aquilo era apenas luz impossível de tocar...

Estranho que o sinal de bonança e esperança maior, este espectro de todas as cores, não seja susceptível de toque. Devia poder-se tocar naquilo que retira a chuva dos nossos dias.

Hoje olho pela minha janela, e limito-me a vê-lo de vez em quando, depois das chuvas maiores.
Apesar de tudo, sei que, mesmo que caiam lágrimas dos céus, não haverá dilúvio.
Velho de Alfama

19 julho, 2009

A Tela

Já fiz muita coisa na vida. Felizmente tive pais que me dessem o que precisava quando era novo. Quando comecei a crescer, eu me sustentava. E nunca achei que o lazer fosse algo de ricos para ricos, ou apenas para gente ociosa. A Arte é das coisas que me fascinou sempre.

A certa altura quis pintar. Ainda trabalhei uns meses para comprar a minha primeira tela em branco, que esperava ansiosamente que eu a pintasse. As tintas já eu as tinha, porque já se nasce com elas.

Aluguei um atelier perto da minha casa, em Alfama. Era uma casinha por fora branca, por dentro igual ao que era cá fora. Estava vazia, não custou nada sequer, o senhorio ofereceu-ma enquanto precisasse dela, disse que podia fazer tudo o que quisesse lá, tinha liberdade. Levei a tela, levei as tintas, e comecei a fazer uns riscos na tela. O sonho estava a concretizar-se. Tanto tempo à espera de poder dar um ar de graça àquela tela que eu havera obtido, e que precisava de cor.
Porém, uns riscos depois, estava farto. A tela ficava cada vez mais bela, mas eu não estava satisfeito. Então, olhei em volta, e vi uma parede branca.

A tela podia esperar. Ela nunca fugiria! E então comecei a pintar a parede. Por lá fiz os mais belos desenhos da minha vida, empreguei toda a minha Arte naquelas paredes nuas, que não sendo minhas (era alugado, o improvisado atelier), me davam mais pulso venéreo para pintar. Para escrever com o pincel.

Passado um tempo, já todos aqueles cantos e recantos da antiga morada de alguém estavam coloridos e belos e cheios de Arte. Pintei também o chão. E a tela aguardava, sempre me observando, sempre lá para quando eu a quisesse pintar.

Eu dormia na minha casa e uma noite, quando eu estava longe do atelier, pensando se pintaria também o tecto e o chão deste, o atelier ruiu. Desabou. Não sei porquê, a noite estava calma.
Quando lá cheguei de manhã, aquelas paredes que eu pintava com tanta Arte eram pó, e não havia mais cor, só cinzento. Era no meio das ruínas que estavam os únicos pingos de cor da cena. Os pequenos riscos que eu tinha feito na tela. A tela permanecia lá, fiel a mim, sempre à minha espera. Peguei nela. Quis fugir daquele sítio, e andei uns metros até encontrar o conforto da minha casa. Coloquei a tela na minha salinha, mesmo ao lado do sofá onde em me sentava sempre. E ela ficou lá sempre à espera que eu a pintasse. Mas eu nunca pintei. De vez em quando pintava em madeira, pintava onde fosse que pintasse. Era a minha Arte, pintar no alheio.

Mas o meu Amor era aquela tela. Se calhar foi por isso que nunca pintei nela, pelo menos mais que alguns riscos coloridos.

Agora que sou velho e a Arte de pintar se foi, arrependo-me de nunca ter pintado aquela tela, que sempre esperou pela minha pincelada dedicada. Eu apenas me dediquei a guardá-la na minha casa, mas a cor que predominou nela foi sempre o branco. Não soube canalizar a minha Arte. Mas no fundo, ninguém sabe gerir a Arte como deve ser. O Amor sabe-se sempre, a Arte não.
Velho de Alfama

18 julho, 2009

Marco

Impressionante. Verdadeiramente impressionante…
Não tenho melhores palavras para descrever esta paisagem. As montanhas que me rodeiam parecem saídas de postais. O verde que se encontra ao meu nível e abaixo de mim, com as ervas rastejantes e as árvores ondulantes. E tanto verde diferente, a esvoaçar e a ondular! O ocasional castanho das típicas casas alpinas, nas suas pequenas aldeias ou rara casinha isolada… Ah! E o som das cascatas, que faz a minha alma voar!
O branco que sobressai por cima de mim é simplesmente magnífico! Chega a ter formas, como borboletas. Enquanto a própria montanha desafia o céu!
O Monte Branco, lá na sua altitude, reclama o seu título de maior gigante europeu. O nosso Atlas.
Seria de esperar que o avassalador peso das montanhas que me rodeiam me caísse nos ombros e me vergasse, mas não, faz-me sentir mais livre. Sinto que sou o Rei do Mundo, que sou imortal e que tudo posso! Verdadeiramente impressionante…
Faz-me sentir mais intimo comigo mesmo. Eu, Marco, com os meus 24 anos, meio Inglês meio Italiano, eterno viajante do Mundo!
Mas quero descobrir mais! Aqui já vi o que tinha a ver. Hei-de voltar, os Alpes Italianos são algo que merece que volte. Mas agora não, agora vou descobrir mais.
Quero ir descobrir Portugal, porque não? Mal sei dizer uma frase em Português mas a curiosidade espicaça-me! Como será?
Sim. Irei amanhã mesmo comprar o bilhete para Lisboa!

Só passou uma semana e já começo a perceber algum Português. O saber Italiano é capaz de ter ajudado um pouco…
Hoje aventurei-me e vim “beber a bica à Brasileira”. Não fazia ideia do que era mas ouvi um Português falar nisso perto do hotel, e pareceu-me boa ideia experimentar algo mais Português. Claro que tive de pedir indicações sobre como o fazer e o que era. Parece que “bica” é café! E esta?
“A Brasileira” tem um ambiente mais sério do que o que eu gosto, mas mais simpático que o hotel. Tem uma estátua de um senhor à porta, que pelo que percebi é um escritor Português. “Fernando Pessoa”, parece-me. Pergunto-me o que terá a ver com “A Brasileira”…
Bem, mas esta zona é linda! Chama-se “baixa”, e é encantadora! Tem uma rua principal, “Rua Augusta” segundo o que li, que é deslumbrante. Os edifícios são claramente antigos, mas muito bem arranjadinhos. Os cafés são giríssimos, e gosto muito dos artistas que há aqui!
Cheguei a ver o espectáculo de um mágico! Não era Português, mas ainda assim foi muito giro e muita gente se reuniu a ver.
Já decidi e amanhã vou explorar melhor esta zona. Que descoberta magnifica!
Marco

15 julho, 2009

Cumprir os desejos

Obrigado por me teres chamado. Só o chamamento leva à ressurreição de um homem que vive através dos outros, sem deixar de ser ele mesmo. E é sempre um prazer ouvir esta voz que pede ajuda, meu pupilo, meu mestre.

Conheci-te um dia por acaso, quando escolheste como teu caminho a nobre arte do teatro. E fui parar às tuas mãos. Que nem barro, moldaste-me a ti. Mas não me mudaste. Quem te mudou fui eu.

Sei-te grato pelos meus ensinamentos. Aliás, que mais poderia eu fazer senão ensinar-te. Nasci há mais de um século atrás. É minha obrigação ter alguma sabedoria de velho. Porém não sou como os outros velhos. O renascer em ti rejuvenesceu-me. Fisicamente, psicologicamente, almamente. Espiritualmente não. Isso é coisa de gente morta.
Este renovar dos poros, do sangue e das ideias transportou-me do 19º século para este actual. Não fazia sentido um renascido pelo palco se manter em tempos tão antigos. Deixem-me ser agora, por favor. Quero ter as palavras do hoje, ver o mundo de hoje, ser hoje. O passado é apenas exemplo e experiência, não realidade. E nisto te agradeço, que me fazes viver mais que um ser humano comum. Sou um privilegiado. Tanto enquanto ser humano que muito dura, como enquanto personagem, que me trataste como nenhuma outra. Talvez não tenha sido a tua maior realização, mas fui o teu maior passo.

Passeemos juntos. Aprecio tanto trocar saberes contigo. E agora que precisas de mim, aqui estou. Sou como o génio da lâmpada. Só que não concedo desejos. Tenho-os.

E é isso que tanto me aproxima de ti. Somos gente com desejo de boa mudança e permanência não tola, tudo dirigido para o cenário utópico da vida e sociedade. Queremos que isto seja perfeito, quando a imperfeição é a nossa cicatriz. Cicatriz que nem as aparências curam (e acredita que tanto no meu século, como no teu, estas existiram e existem, respectivamente. As pessoas não mudam.). Cicatriz incurável, mas que tem de ser desinfectada.

Lutemos juntos. Através das palavras e acções. Do pensamento. Através do mais que podemos. E por favor, junta os teus a esta batalha pseudo-intelectual e prática , que eu não posso juntar os meus. Os antepassados do hoje estão mortos. E antes que isso a nós nos aconteça, façamos algo juntos.

A morte chega cedo e a vida é breve. E tu não és como eu, uma personagem de teatro pronta a ser ressuscitada por um actor amador dedicado. És efémero.

Chegou a hora, meu pupilo, meu mestre.

Leonardo Goring

O Horror

Mato-os?

Mutilo-os, dilacero-os, firo-os, mortifico-os, esgano-os, esventro-os, desmembro-os, ABATO-OS como os animais que são?! Prostro-os, amarro-os, amordaço-os, enforco-os, bato-lhes, maltrato-os, corto-os, arranco-lhes as unhas, queimo-os, parto-lhes tudo o que há para partir, sangro-os até ficarem EXANGUES?!


Não.

Porquê?

É crime.

E o que eles fizeram não?

Sim.

Então? Mutilo-me? Descarrego na primeira pessoa que aparecer?!

Não são os culpados.

Então que faço desta ira que se apodera de mim ao pensar no maior crime que existe? Roubaram a inocência, a infância, a virgindade, o amor! A barbaridade dos seus actos não deixa qualquer espaço a perdão!

Então porque aparecem tantos casos assim? Que aconteceu à bondade e à humanidade do ser humano? Como pode Deus ter deixado espaço no Homem para tais aberrações acontecerem?

Como pode a pedofilia ser uma realidade? Como pode na maioria dos casos o culpado não ser punido devidamente?

É impressionante a forma como me contorço, como as minhas veias e músculos ficam salientes, como salivo. A minha face: contorcida num espasmo de horror, passando rapidamente para uma expressão animalesca. Os meus olhos: vermelhos. As minhas sobrancelhas: apertadas. Os lábios: arreganhados, mostrando ameaçadoramente os dentes. As narinas: dilatadas, permitindo uma melhor oxigenação, pronto para o ataque! A minha alma: PURA RAIVA!

Mas que posso fazer? Meu Deus, que posso fazer?!

Sou só eu e o meu charuto. Nestas alturas nem o meu gato se aproxima de mim.

Só eu e o meu charuto…

Virgílio Corvo

14 julho, 2009

Virgílio Corvo

Encontro-me actualmente sentado na minha poltrona e só encontro a saúde mental quando fumo o meu charuto cubano. Até ao momento em que a doce névoa branca me cobre o rosto, sinto-me revoltado e ateado de uma raiva que me transcende, que engloba todo o antro de porcos imundos que só querem encher os seus bolsos e a vagina de outrem. Sinto os meus esforços de contacto humano como vãos e sem sentido, quando nada me responde e me respeita, e me cospem e atiram para uma valeta imunda, repleta de vermes rastejantes que consomem abruptamente o cadáver de outro sem-vida. Eu sou Virgílio Corvo, se bem que nestas alturas, quem pode dizer com certeza quem é?

O meu franzino ser nauseado fica ao relembrar-se de todas as franquias que se achegam aos afortunados que paupérrimos de espírito são, e que por missarem frequentemente sofrem de grave caso de metamorfopsia, pois ao se verem ao espelho pensam ver o Papa. Pecam, confessam, e livres de culpa estão. Enojo-me com tais Pilates! A bílis que por mim se liberta regozija com sentimentos tais e todo o corpo me arde, contorcendo-me e fechando os olhos procurando esquecer-me de tais males. Quando os abro, no mesmo sítio me encontro e o fragor que ininterruptamente me atinge liberta pensamentos pecaminosamente iracundos na minha alma. Para o quinto círculo do Inferno de Dante irei, ocorre-me. Mas de facto poucos serão os círculos dos quais não sou merecedor…

Sou descabelado, desconjuntado, descrente, desconcorde, desconsolado, mas nunca desconcordante ou desconexo! Tudo sou, mas cumpro o que sou e o que o que acredito me ordena ser. Não posso com os energúmenos que apelam a doutrinas igualitárias, enquanto agem de forma elitista! Não nos encontramos num território irredento, sabemos bem as fronteiras que delimitam o racional, e as que delimitam o humano, e sabemos bem de que lado da fronteira se encontram estas atitudes: do racional inumano!

Eles querem tudo! Eles comem tudo! Eles comem o que defecam para que nada sobre para outros! E nem capazes de o admitir são… Escondem-se atrás de Quem-Tudo-Pode e confessam-lhes os seus pecados, sentindo-se seguros, mesmo quando o seu Livro Sagrado condena às mais vivas chamas do Inferno aquilo que eles personificam.

Por não compreender o incompreensível execrando na vida sou. Tanto tenho a dizer, tanto que quero falar, que esta não será a ultima vez que ouvirão a minha inaudível voz!
Não pretendendo exacerbar opiniões, mas alertar para o intolerável, esta é a minha exegese.

Virgílio Corvo

Jovens...

Há alguns dias abordaram-me na rua com o propósito de me entregar um folheto informativo sobre a violência doméstica, folheto este que destacava a violência em namoros entre jovens. Este folheto apresentava vários dados e esclarecia substancialmente certos mitos em relação ao namoro, foi ao ler esta última categoria que me perguntei, o que raio é que se passa aqui? Não percebo como vivemos nesta sociedade tão aberta à divulgação e à informação e a maioria dos jovens pensam que tem de se submeter para que a sua relação continue, ou que um empurrão não faz mal ou ainda que mais vale terem uma relação em que são vitimas do que estarem sozinhos. Um em que cada quatro jovens em Portugal já foi vítima de violência no namoro.
Sinceramente não entendo. Talvez analisando a nossa sociedade, reflectindo sobres estes dados e as informações do panfleto pode ser que perceba o porquê de existir esta realidade. Os jovens estão cada vez mais a criar uma vida de desperdício para si próprios onde o abuso de drogas, álcool e sexo prematuro, descontrolado e desprotegido em conjunto com uma mente de criança, pois são isso que pessoas com 13 ou 15 anos são, resulta numa mistura explosiva que tem como consequências mais comportamentos de risco e atitudes loucas formando um ciclo vicioso. Mas estes comportamentos não aparecem como por magia na cabeça destes jovens, acuso a sociedade de tal feito.
Acuso os pais negligentes, aqueles que se esquecem de se preocupar com a vida dos filhos, com aquilo que eles fazem, com aquilo que eles vêm como certo, acuso a cada vez maior promoção de atitudes irracionais e estúpidas como é um exemplo bem claro a série juvenil morangos com açúcar onde anos após anos fomenta violência, abusos de substâncias e relações sexuais entre pessoas que mal se acabam de conhecer… Acuso o que quer que seja que transforme crianças em animas loucos e irresponsáveis que tentam ou que são forçados a ter atitudes adultas, que acabam sempre por ter um resultado negativo.

Acusações à parte, gostava de relembrar o propósito de ter abordado a violência doméstica entre jovens neste texto, este é um assunto deveras importante é um dos maiores problemas das sociedades actuais e é necessário que todos reflictam, é necessário que exista uma consciência.
Melinda

13 julho, 2009

Quem nos representa

É do conhecimento público que, perante demonstrações sanguinárias e terroristas que vulgarmente gozam do nome de tauromaquia, todas e cada uma das palavras que expresso são do mais preciso desagrado e luto: pelos animais e por quem os condena na arena, diante de várias centenas ou milhares de homens e mulheres que transportam nas suas mentes depravações graves que deveriam ser remetidas, sem excepção feita a nenhum deles, ao médico psiquiatra mais especialista, por forma a reduzir o risco de mais animais sofrerem em público ou longe dele, ou mesmo de morrerem (o triste destino que se guarda à grande maioria, segundo aquilo em que eu acredito.) Nem as minhas origens nem muitos bons momentos que desfrutei na cidade onde me viram nascer hão-de, a curto ou longo prazo, alterar estas minhas convicções de que o mundo seria bem melhor sem julgamentos e execuções primárias e em série de animais, e que mesmo esta nossa região do Ribatejo faria brilhar mais o seu nome se este não carregase o fardo de todos os crimes que as suas tradições já induziram os seus conterrâneos fervorosos a cometer.
Passa pouco mais de uma semana desde que regressei de um breve passeio, num muito confortável comboio que percorre o litoral português entre as duas grandes áreas urbanas portuguesas. Do Porto, esse comboio com facilidade me trouxe a Vila Franca de Xira, onde já o meu pai me esperava e à minha mãe para que viéssemos para aqui, para o nosso lar. Não exagero em larga medida se afirmo, o meu rosto bastante sério e o meu tom bastante sincero, que o grande turismo do planeta confluía, àquela hora, todo ele nessa cidade aqui tão próxima. E o motivo, oposto ao que eu desejava observar pela multidão tão vasta, era dos piores e dos mais lógicos numa cidade como aquela: festas tauromáquicas. Podia, segundo tantas possibilidades que afiguram a cada momento, haver encerrado os olhos para evitar o confronto com tamanha atrocidade e distinção entre a euforia do Homem e o sofrer aguçado e certo de tantos animais. Apesar dessa possibilidade que era a meu favor, preferi manter a minha visão na direcção das pessoas que se ajuntavam a aguardar as largadas, pensando muito cá dentro que "o mundo não tem melhorado, não tem melhorado."
Dias antes deste episódio, um dia antes da partida para esse breve passeio pelo Norte do país, eu mesmo olhei um touro e todo o espectáculo e polémica a que estes animais, sempre e sempre, dão origem onde quer que surjam. Não me refiro a bois daqueles que falei previamente. Refiro-me à postura de touro em que toda a imprensa e comunicação social gravou, em diversos suportes visuais, o antigo ministro da economia. A sua demissão revelar-se-ia um acontecimento na sequência directa deste incidente, sobre o qual reflecti mais do que muitos. A generalidade de pessoas considerou tal atrevimento uma outra demonstração da incorrecção e indisciplina dos ministros e deputados, como já houve tantas outras e as quais se parecem repetir sempre que o chão está por baixo de nós. Porém, o meu entendimento da questão aprofunda-se mais do que essas considerações que não condeno, e vai de encontro à opinião de um crítico, cujo nome desconheço, que fez públicas as suas palavras de que tal sucesso na Assembleia da República - o local onde se faz política em Portugal - demonstra apenas e tão simplesmente o pouquíssimo respeito que os políticos nutrem e expressam pela população do seu país.
Muito concretamente, as cadeiras daquela enorme sala não são, e por uma razão própria não o são, sequer semelhantes aos bancos em que nos sentamos nos jardins públicos ou aos sofás que dispomos nas salas das nossas habitações. Os primeiros são assentos que todos nós podemos usar, embora sempre para os mesmos fins, que são os de sentar, ou em alguns casos excepcionais poderão servir igualmente para deitar o corpo e descansar. Os segundos são pessoais e quase intransmissíveis, encontram-se na nossa casa, distante dos olhares gerais e de desconhecidos, adquiridos pelo poder quase infinito do dinheiro. Os assentos do parlamento são muito dissonantes destes: a autorização de neles se sentar é concedida pelo voto de confiança do eleitorado de quem neles se passa a ver sentado: nunca é demasiado recordar que os deputados não nasceram com o privilégio de discursar ou de gastar parte dos seus dias numa sala de tal maneira sumptuosa. Eles ganharam o seu trabalho nessa sala uma vez que Portugal, como um país não tão pequeno como tipicamente se diz, é ocupado por uma população muito superior à capacidade dessa sala, o que faz com que os políticos tenham de ser eleitos pelos cidadãos e passem a representar todos aqueles que votaram na sua cor política. É então óbvio que quando o ministro da economia (o antigo e felizmente antigo) ofendeu o nosso deputado do Partido Comunista, esse antigo ministro estava a sugerir que todos os comunistas portugueses têm aquele par de cornos. Se tivesse sugerido tal coisa ao deputado Bernardino Soares fora daquela sala de debates, então os comunistas portugueses nada teriam que ver com esse gesto ofensivo. Contudo, no momento em que os deputados entram naquele espaço público e de responsabilidade, despem a sua vida pessoal e vestem os anseios, as preocupações, as ideias e as vontades daqueles que, no seu país, estão de acordo com a ideologia defendida. É então por este forte motivo que apelo a todos os portugueses jovens e responsáveis a que ingressem na vida política, agora não apenas através do voto consciente, mas também através de propostas de representar com lealdade todos os portugueses que merecem maior respeito por parte daqueles que apenas são empregados porque nós votámos para que isso sucedesse, e que nas nossas costas tantas vezes atentam contra os nossos próprios empregos. Jovens, façam-se representar ou representem. Se algum bem aconteceu no mundo desde a sua criação, ele não se inventou a si próprio, antes foi concebido pela vontade e estímulo de quem acreditou na mudança.
Quanto aos políticos, lembrem-se bem do que vos digo de seguida (ainda que saiba que nenhum chegará a este blogue): as batalhas verbais com que atacam os deputados de cores partidárias diferentes são a representação de uma proposta de guerra civil à população portuguesa. No momento em que todos os portugueses se atacarem entre si com palavras cruéis como as que vocês usam nos vossos debates, então poderão usá-las. Se o país pretende a paz, está nas vossas mãos manter a paz no parlamento: ouvirem-se uns aos outros, responder a cada proposta e opinião como se houvesse amizade a ligar-vos, chegar a consensos que representem as vontades dos portugueses e que resolvam os problemas com que estes lidam diariamente, numa labuta que poucos ou nenhuns merecem conhecer.
Camarada Fratírio Telmo

11 julho, 2009

A Contradição do Hipócrita

-Não. O comunismo é terrível!
-E porque dizes isso? Admito algumas falhas. Não há nada perfeito, mas...
-O comunismo é mau para a religião! Diz que é o ópio da sociedade! E Deus e a verdade devem ser espalhados pelo mundo...
-Oh, não é bem assim...
-Claro que é. E o pior do comunismo é que é injusto!
-Injusto? Espera...isso não faz sent...
-Faz. No comunismo, os rendimentos repartem-se de igual maneira, por mais que as pessoas trabalhem! E uma pessoa que tem imenso, por mérito próprio, fica com um nível de vida igual a esses drogados que andam aí, e essa gente toda...
...
Não vale a pena continuar a conversa. Já leram o que basta para prosseguir.

E não estou aqui para defender o comunismo, nem a religião. Pelo menos por agora. Estou aqui para vos mostrar o ponto de vista de um católico capitalista, e pensem se por acaso faz sentido. Apenas preciso de mostrar com que argumentos este defende os seus credos religiosos e económicos, e afirma convictamente que o comunismo é a peste do mundo, e deve ser a todo o custo ser evitada.

Para que conste, a conversa acima é resultado de um conjunto de discussões com uns quantos jovens santos católicos, tão fiéis à palavra de Cristo, quanto Dalila foi a Sansão.

Atentemos. Um dos principais argumentos anti-comunismo, para os que batem no peito todas as missas, com humilde arrependimento, é o facto deste não ser propriamente um apoiante da religião. Está bem, até aqui percebo. Estão a defender os seus profundos ideais, e se o comunismo vai contra a sua política espiritual, então defendam-na que aceitamos. Neste caso, a religião é a cria, o crente é a mãe que a defende dos males externos. Aceitável.

Porém, quando este primeiro argumento se cruza com o segundo, surge a palavra contradição. ora, este segundo argumento anti-comunismo para um católico, que por ser segundo não o impede de ser o mais usado, tem que ver com as noções capitalistas tão em voga hoje em dia. Trabalho, mérito, sobe um degrau, mais trabalho e mais umas coisas pelo meio, mais dois degraus. E isto até lá acima. É o capitalismo, quem sou eu para discuti-lo. No entanto, um católico deveria discuti-lo. Um católico que tanto defende e cumpre a sua religião torna-se hipócrita quando defende que uns devem viver em cima, e os restantes em baixo destes. É hipócrita quando acusam o comunismo de defender a má da igualdade, quando o próprio Jesus Cristo a prega como não prega qualquer outra coisa.

Algures na Bíblia "Os que estão à frente ficaram atrás, e os que estão atrás ficarão à frente". Algo assim.

E imensos versículos sobre a igualdade, sobre a luta contra as riquezas e materialismo. Tantas palavras sagradas, e que supostamente seriam para cumprir pelos jovens católicos extremistas, sobre a importância de ajudar os outros, de repartir os rendimentos. Foi na Bíblia que nasceu a segurança social!
Basta procurarem que encontram.

Mas os católicos de hoje cospem nas palavras de Jesus, porque não lhes convém. Apenas lêem literalmente os que lhes apetece. Usam a importância da diferença entre X e Y para desacreditar o comunismo que ofende a religião, quando o comunismo está mais conforme o cristianismo que eles!

...

-O comunismo é mau para a religião. Meu rico catolicismo, minha querida Bíblia! E o comunismo é mau, porque defende a igualdade extrema.
-Mas a Bíblia defende a igualdade extrema! Os teus argumentos até podem ser verdadeiros, estar certos ou errados, mas tu não os podes usar em conjunto! E são
os únicos que usas.
-Ah mas todos têm de conhecer a verdade. Amen! E uns trabalham mais, logo têm de ter mais! O comunismo é mau.
-Não percebes mesmo, pois não? Ou defendes o cristianismo, ou defendes o capitalismo!
-Defendo os dois!
-Não me venhas dizer que o capitalismo é mais santo que o comunismo.
-Digo.
-Vai ler a Bíblia...
-Sei-a de cor.
-Se sabes, então aprecias a noção de igualdade e justiça SOCIAL...
-Não.
-Ok. Nunca vais aprender.
pessoa Ix

30 junho, 2009

Máquina para melhorar o cavalo

Porque deve, com persistência e tenacidade, este cavalo levar em seu dorso tais enormes criaturas que, da sua dimensão e estatura acima dos requisitos que satisfazem, o vão impedindo frequentemente de progredir na sua marcha ou no seu galope, se mais convier à evolução que ele vá galopando? Que ninguém me dedique nem parte nem todo de uma indiferença que me haveria de magoar se, entre os vossos interesses mais íntimos, se encontrarem estes bichos tão estimáveis que são os cavalos. E também as éguas. Que fiquem definitivamente esclarecidos que não me refiro a nenhum desses cavalos de quatro pernas (pois este é redondo), nem sequer a nenhum desses cavalos aos quais basta um guiador (a este muitos mais serão úteis), mas refiro-me a um distinto cavalo que, à semelhança de todos esses mais comuns, detém a capacidade, de resto muito característica, de nos magoar com seus coices. E a mais, a aproveitar a maré de esclarecimentos que em breve findará, não me detestem todos por maldizer, e de que forma dura e fria, os seres humanos menos magros e elegantes, pois também a esses nunca me quis referir. A questão, se neste momento vos figura bem mais complexa do que perceberam ao início, centra-se num único ponto fundamental: este cavalo é somente, e não mais do que isso, este mundo, humanamente, e este planeta, fisicamente. Ambos estes são retardados na sua marcha pela evolução por criaturas que não são, em regime forçoso, vítimas de obesidade, mas sim de uma doença crónica e perigosíssima a que damos o nome de conservadorismo.
O ponto, já mencionado além em cima, que pretendo, antes de mais, tornar a salientar é o dos coices que os cavalos sabem dar como ninguém. Atendendo a que qualquer cavalo que tenho referido nesta exegese deve, para melhor entendimento e mais seguro, ser interpretado como sendo este mundo que todos pisamos, que os vivos vão conhecendo e que os mortos já largaram, que coices serão esses com que o mundo nos lesa? O termo carece de elevada objectividade, ou estaria a imaginar, com a minha rica imaginação, que muitos frutos já concebeu, que as patas traseiras do mundo corresponderiam a elevadas montanhas ou penhascos do hemisfério sul, e que, a cada ser que se atravessasse por eles, estes lhe dariam o dito coice, fazendo com que todos esses seres conhecessem o ar e o gosto pelo voo sem o auxílio de um avião. Experimentem julgar esta possibilidade remota, e concluirão que eu seria louco se tal considerasse e aqui expressasse. Os coices do mundo (mundo é humano e planeta é físico, recordo), são, no fim de contas e palavreados, as reacções indesejadas das pessoas àquilo que somos, que fazemos, que sonhamos ou que queremos, ao fim de tudo mostrando. Numa palavra, que se torna mais simples com essa condição: intolerância. Noutra palavra, essa já usada: conservadorismo.
Em variadas vezes, a grande maioria de nós legitima a intolerância e o conservadorismo com a manutenção e acção das doutrinas religiosas. Este aspecto é bastante simples e relaciona-se com o progresso, ou não, das mentalidades assumidas pelos humanos. A religião, ou o grosso número delas, apresenta hoje os mesmos princípios e premissas, assim como os mesmos comportamentos e atitudes propostas, que no seu início, há imensos séculos, pouco havendo alterado desde essa época até aos dias do presente. A perspectiva do mundo pela religião é, daí, a mesma, sendo necessários os mesmos esforços para a felicidade, para a dignidade e para a aceitação dos outros, como se um protocolo existisse e fôssemos forçados a jurar-lhe obediência, sob pena de marginalização do resto dos humanos (com certeza, todos os outros perfeitos). Os menos religiosos, ou os de pensamento (não os persuadidos), vão concebendo, nas suas mãos, a flor do progresso, que muitos triunfos tem conseguido trazer até nós. Esse grupo de pessoas, aumentando a cada nascimento que se regista, é um grupo cuja mente vai acompanhando os novos tempos e as novas ideias, afastando-se sempre mais das doutrinas apresentadas pelas Igrejas. Desde o início do universo até ao momento exacto em que escrevo esta exegese, apenas com a Idade Média o mundo regrediu na sua mentalidade, cedendo às ideias conservadoras. Desde aí e antes dessa época negra (não sou eu que a chamo de negra, todos usam esse epíteto a seu respeito), sempre foi a Igreja que foi realizando pequenos passos para suavizar o afastamento dos humanos não religiosos ou de pensamento. Daqui concluo que a religião e os conservadores são reconhecem, no abstracto de toda a evolução, em que época pretendem fixar-se para a eternidade. Os conservadores conservam... mas conservam, ou procuram conservar o quê? No século XIX, os conservadores propunham o retrocesso ao absolutismo régio. Em finais do século XIX, os conservadores propunham o regresso às ideias e comportamentos do início desse século - o Romantismo - e hoje os conservadores portugueses olham o Salazarismo, de meados do século passado, como o ideal a que retornaremos muito em breve. Amigos conservadores, façam o favor de se decidir e de tomarem uma verdadeira posição, essa que seja definitiva, ou arriscam-se a perder a honra que tanto defendem, uma vez que a razão, essa, já perderam há imensos séculos, se chegaram a tê-la. Os progressistas defendem o avanço da espécie, a evolução segundo condições cada dia mais aperfeiçoadas. Ora, o futuro é indeterminado - os progressistas não podem saber ao certo para onde pretendem caminhar - mas o passado aconteceu, está escrito e é debatido desde sempre. Então, porque não saberão os conservadores o que defender ao certo? Apercebo uma certa inquietação e um certo receio da sua parte...
No entanto, a assunção da sua posição, com os seus vértices bem polidos, é algo que, concorde ou não com a posição em causa, eu aplaudo de pé. Assim sendo, se se tornar necessário optar entre conservadores e jovens progressistas na sua grande maioria, eu ainda prefiro os senhores conservadores, por mais que estes não saibam o que são nem o que querem e critiquem as opções dos que já encontraram o seu rumo. A explicação é bem simples e não requer um juízo muito elaborado sobre o assunto. A grande parte dos jovens de hoje, dos mais tímidos aos mais extrovertidos e dos mais pobres aos mais consumistas, ostenta uma atitude que se percepciona como tendo dois pesos e duas medidas, em duas variáveis: "eu" e "os outros". Este descontentamento que partilho convosco consiste na intolerância de uns jovens em relação aos outros, em simultâneo que esses mesmos jovens esperam do mundo inteiro a completa consideração de acordo com os seus projectos e caminhos. Apresento um exemplo: um jovem, que podemos apelidar de Vasconcelos, reconheceu, no seu âmago, o desespero por colorir o seu cabelo de lilás. O mundo tem de aceitar a sua decisão, uma vez que nem as leis jurídicas nem as leis éticas proíbem que o pinte, e tão-pouco que o pinte dessa cor que tenho visto em algumas flores - daí que não me admire que algumas pessoas desejem levar um pouco da natureza e das flores para o seu cabelo. O Vasconcelos, por outro lado, provavelmente menospreza pessoas que observa na rua e que critica com aversão: será intolerante perante pessoas debilitadas, perante homossexuais se o Vasconcelos não for tão adepto de pegar em paus como de cavar buracos, perante pobres se o Vasconcelos, como o nome muitas vezes sugere, for abastado, ou perante varredores de rua se o Vasconcelos estiver a cursar gestão empresarial ou tecnologia e engenharia de obras públicas e investimentos transnacionais.
Esta manhã levei-me por meus próprios pés a destruir aquilo que vi crescer todos os dias, com fé de recuperar o que de meu já andava distante havia alguns meses. Ao fim de muito pouco tempo, encontrei metros de cabelo meu a bailarem, no chão do estabelecimento, sempre que uma brisa arejava de fora para dentro. E perguntei-me, na altura, porque não será tão simples erradicar da face da terra o conservadorismo se para erradicar excesso de cabelo basta ligar uma máquina que o corta. E torno a formular a questão: de que máquina precisa o mundo para se tornar um mundo melhor onde a igualdade domine?
Camarada Fratírio Telmo