Já fiz muita coisa na vida. Felizmente tive pais que me dessem o que precisava quando era novo. Quando comecei a crescer, eu me sustentava. E nunca achei que o lazer fosse algo de ricos para ricos, ou apenas para gente ociosa. A Arte é das coisas que me fascinou sempre.
A certa altura quis pintar. Ainda trabalhei uns meses para comprar a minha primeira tela em branco, que esperava ansiosamente que eu a pintasse. As tintas já eu as tinha, porque já se nasce com elas.
Aluguei um atelier perto da minha casa, em Alfama. Era uma casinha por fora branca, por dentro igual ao que era cá fora. Estava vazia, não custou nada sequer, o senhorio ofereceu-ma enquanto precisasse dela, disse que podia fazer tudo o que quisesse lá, tinha liberdade. Levei a tela, levei as tintas, e comecei a fazer uns riscos na tela. O sonho estava a concretizar-se. Tanto tempo à espera de poder dar um ar de graça àquela tela que eu havera obtido, e que precisava de cor.
Porém, uns riscos depois, estava farto. A tela ficava cada vez mais bela, mas eu não estava satisfeito. Então, olhei em volta, e vi uma parede branca.
A tela podia esperar. Ela nunca fugiria! E então comecei a pintar a parede. Por lá fiz os mais belos desenhos da minha vida, empreguei toda a minha Arte naquelas paredes nuas, que não sendo minhas (era alugado, o improvisado atelier), me davam mais pulso venéreo para pintar. Para escrever com o pincel.
Passado um tempo, já todos aqueles cantos e recantos da antiga morada de alguém estavam coloridos e belos e cheios de Arte. Pintei também o chão. E a tela aguardava, sempre me observando, sempre lá para quando eu a quisesse pintar.
Eu dormia na minha casa e uma noite, quando eu estava longe do atelier, pensando se pintaria também o tecto e o chão deste, o atelier ruiu. Desabou. Não sei porquê, a noite estava calma.
Quando lá cheguei de manhã, aquelas paredes que eu pintava com tanta Arte eram pó, e não havia mais cor, só cinzento. Era no meio das ruínas que estavam os únicos pingos de cor da cena. Os pequenos riscos que eu tinha feito na tela. A tela permanecia lá, fiel a mim, sempre à minha espera. Peguei nela. Quis fugir daquele sítio, e andei uns metros até encontrar o conforto da minha casa. Coloquei a tela na minha salinha, mesmo ao lado do sofá onde em me sentava sempre. E ela ficou lá sempre à espera que eu a pintasse. Mas eu nunca pintei. De vez em quando pintava em madeira, pintava onde fosse que pintasse. Era a minha Arte, pintar no alheio.
Mas o meu Amor era aquela tela. Se calhar foi por isso que nunca pintei nela, pelo menos mais que alguns riscos coloridos.
Agora que sou velho e a Arte de pintar se foi, arrependo-me de nunca ter pintado aquela tela, que sempre esperou pela minha pincelada dedicada. Eu apenas me dediquei a guardá-la na minha casa, mas a cor que predominou nela foi sempre o branco. Não soube canalizar a minha Arte. Mas no fundo, ninguém sabe gerir a Arte como deve ser. O Amor sabe-se sempre, a Arte não.
Velho de Alfama
Em Alfama, e não só, muitos ateliers e, muito mais importante, variadíssimas habitações hão-de ter já ruído, trazendo a destruição de muito mais do que arte: às vezes do único abrigo de quem pouco sustento ainda vai tendo nesta vida. Escolhi comentar este tema, que apesar de mencionado não foi abordado em extrema escala neste texto, porque pretendo incidir no seu relevo em breve, num texto meu para este mesmo blogue. Agradeço muito o senhor por ter trazido essa temática que na nossa zona, e no país todo, vai recolhendo menos consensos do que o quanto fundamental ele me parece ser.
ResponderEliminarDe nada, Camarada
ResponderEliminarÉ um prazer.