30 junho, 2009

Máquina para melhorar o cavalo

Porque deve, com persistência e tenacidade, este cavalo levar em seu dorso tais enormes criaturas que, da sua dimensão e estatura acima dos requisitos que satisfazem, o vão impedindo frequentemente de progredir na sua marcha ou no seu galope, se mais convier à evolução que ele vá galopando? Que ninguém me dedique nem parte nem todo de uma indiferença que me haveria de magoar se, entre os vossos interesses mais íntimos, se encontrarem estes bichos tão estimáveis que são os cavalos. E também as éguas. Que fiquem definitivamente esclarecidos que não me refiro a nenhum desses cavalos de quatro pernas (pois este é redondo), nem sequer a nenhum desses cavalos aos quais basta um guiador (a este muitos mais serão úteis), mas refiro-me a um distinto cavalo que, à semelhança de todos esses mais comuns, detém a capacidade, de resto muito característica, de nos magoar com seus coices. E a mais, a aproveitar a maré de esclarecimentos que em breve findará, não me detestem todos por maldizer, e de que forma dura e fria, os seres humanos menos magros e elegantes, pois também a esses nunca me quis referir. A questão, se neste momento vos figura bem mais complexa do que perceberam ao início, centra-se num único ponto fundamental: este cavalo é somente, e não mais do que isso, este mundo, humanamente, e este planeta, fisicamente. Ambos estes são retardados na sua marcha pela evolução por criaturas que não são, em regime forçoso, vítimas de obesidade, mas sim de uma doença crónica e perigosíssima a que damos o nome de conservadorismo.
O ponto, já mencionado além em cima, que pretendo, antes de mais, tornar a salientar é o dos coices que os cavalos sabem dar como ninguém. Atendendo a que qualquer cavalo que tenho referido nesta exegese deve, para melhor entendimento e mais seguro, ser interpretado como sendo este mundo que todos pisamos, que os vivos vão conhecendo e que os mortos já largaram, que coices serão esses com que o mundo nos lesa? O termo carece de elevada objectividade, ou estaria a imaginar, com a minha rica imaginação, que muitos frutos já concebeu, que as patas traseiras do mundo corresponderiam a elevadas montanhas ou penhascos do hemisfério sul, e que, a cada ser que se atravessasse por eles, estes lhe dariam o dito coice, fazendo com que todos esses seres conhecessem o ar e o gosto pelo voo sem o auxílio de um avião. Experimentem julgar esta possibilidade remota, e concluirão que eu seria louco se tal considerasse e aqui expressasse. Os coices do mundo (mundo é humano e planeta é físico, recordo), são, no fim de contas e palavreados, as reacções indesejadas das pessoas àquilo que somos, que fazemos, que sonhamos ou que queremos, ao fim de tudo mostrando. Numa palavra, que se torna mais simples com essa condição: intolerância. Noutra palavra, essa já usada: conservadorismo.
Em variadas vezes, a grande maioria de nós legitima a intolerância e o conservadorismo com a manutenção e acção das doutrinas religiosas. Este aspecto é bastante simples e relaciona-se com o progresso, ou não, das mentalidades assumidas pelos humanos. A religião, ou o grosso número delas, apresenta hoje os mesmos princípios e premissas, assim como os mesmos comportamentos e atitudes propostas, que no seu início, há imensos séculos, pouco havendo alterado desde essa época até aos dias do presente. A perspectiva do mundo pela religião é, daí, a mesma, sendo necessários os mesmos esforços para a felicidade, para a dignidade e para a aceitação dos outros, como se um protocolo existisse e fôssemos forçados a jurar-lhe obediência, sob pena de marginalização do resto dos humanos (com certeza, todos os outros perfeitos). Os menos religiosos, ou os de pensamento (não os persuadidos), vão concebendo, nas suas mãos, a flor do progresso, que muitos triunfos tem conseguido trazer até nós. Esse grupo de pessoas, aumentando a cada nascimento que se regista, é um grupo cuja mente vai acompanhando os novos tempos e as novas ideias, afastando-se sempre mais das doutrinas apresentadas pelas Igrejas. Desde o início do universo até ao momento exacto em que escrevo esta exegese, apenas com a Idade Média o mundo regrediu na sua mentalidade, cedendo às ideias conservadoras. Desde aí e antes dessa época negra (não sou eu que a chamo de negra, todos usam esse epíteto a seu respeito), sempre foi a Igreja que foi realizando pequenos passos para suavizar o afastamento dos humanos não religiosos ou de pensamento. Daqui concluo que a religião e os conservadores são reconhecem, no abstracto de toda a evolução, em que época pretendem fixar-se para a eternidade. Os conservadores conservam... mas conservam, ou procuram conservar o quê? No século XIX, os conservadores propunham o retrocesso ao absolutismo régio. Em finais do século XIX, os conservadores propunham o regresso às ideias e comportamentos do início desse século - o Romantismo - e hoje os conservadores portugueses olham o Salazarismo, de meados do século passado, como o ideal a que retornaremos muito em breve. Amigos conservadores, façam o favor de se decidir e de tomarem uma verdadeira posição, essa que seja definitiva, ou arriscam-se a perder a honra que tanto defendem, uma vez que a razão, essa, já perderam há imensos séculos, se chegaram a tê-la. Os progressistas defendem o avanço da espécie, a evolução segundo condições cada dia mais aperfeiçoadas. Ora, o futuro é indeterminado - os progressistas não podem saber ao certo para onde pretendem caminhar - mas o passado aconteceu, está escrito e é debatido desde sempre. Então, porque não saberão os conservadores o que defender ao certo? Apercebo uma certa inquietação e um certo receio da sua parte...
No entanto, a assunção da sua posição, com os seus vértices bem polidos, é algo que, concorde ou não com a posição em causa, eu aplaudo de pé. Assim sendo, se se tornar necessário optar entre conservadores e jovens progressistas na sua grande maioria, eu ainda prefiro os senhores conservadores, por mais que estes não saibam o que são nem o que querem e critiquem as opções dos que já encontraram o seu rumo. A explicação é bem simples e não requer um juízo muito elaborado sobre o assunto. A grande parte dos jovens de hoje, dos mais tímidos aos mais extrovertidos e dos mais pobres aos mais consumistas, ostenta uma atitude que se percepciona como tendo dois pesos e duas medidas, em duas variáveis: "eu" e "os outros". Este descontentamento que partilho convosco consiste na intolerância de uns jovens em relação aos outros, em simultâneo que esses mesmos jovens esperam do mundo inteiro a completa consideração de acordo com os seus projectos e caminhos. Apresento um exemplo: um jovem, que podemos apelidar de Vasconcelos, reconheceu, no seu âmago, o desespero por colorir o seu cabelo de lilás. O mundo tem de aceitar a sua decisão, uma vez que nem as leis jurídicas nem as leis éticas proíbem que o pinte, e tão-pouco que o pinte dessa cor que tenho visto em algumas flores - daí que não me admire que algumas pessoas desejem levar um pouco da natureza e das flores para o seu cabelo. O Vasconcelos, por outro lado, provavelmente menospreza pessoas que observa na rua e que critica com aversão: será intolerante perante pessoas debilitadas, perante homossexuais se o Vasconcelos não for tão adepto de pegar em paus como de cavar buracos, perante pobres se o Vasconcelos, como o nome muitas vezes sugere, for abastado, ou perante varredores de rua se o Vasconcelos estiver a cursar gestão empresarial ou tecnologia e engenharia de obras públicas e investimentos transnacionais.
Esta manhã levei-me por meus próprios pés a destruir aquilo que vi crescer todos os dias, com fé de recuperar o que de meu já andava distante havia alguns meses. Ao fim de muito pouco tempo, encontrei metros de cabelo meu a bailarem, no chão do estabelecimento, sempre que uma brisa arejava de fora para dentro. E perguntei-me, na altura, porque não será tão simples erradicar da face da terra o conservadorismo se para erradicar excesso de cabelo basta ligar uma máquina que o corta. E torno a formular a questão: de que máquina precisa o mundo para se tornar um mundo melhor onde a igualdade domine?
Camarada Fratírio Telmo