09 setembro, 2009

O Pião

Já passaram muitos anos. O meu irmão ainda me visita quase todos os dias.

Este meu irmão era o meu parceiro na infância. Eu era mais velho, cuidava dele. Ele estava protegido. Eu estava feliz.

Ele era muito despassarado!

Aluado, aluado, era uma criança que podia ir contra as paredes, que não dava por isso. Mas ele gostava de brincar, e apesar de ser a criança de cabeça na Lua que era, eu brincava sempre com ele. E como pessoa consciente que era, que sempre reflecti muito, às vezes pausava a brincadeira para observá-lo apenas, conhecer este meu irmão.

...

Ele tinha um Pião. Adorava-o! No dia em que a Mãe o trouxe, ele só soube brincar com ele...e brincou por semanas a fio com o Pião. Porém, um dia cansou-se desta sua fonte de felicidade, e isolou-se. Guardou o Pião na arca das memórias, e deixou-se de distracções. A única era eu.

Uma criança...sem brinquedos, só comigo, o seu irmão.

Mas era português, e até as crianças têm saudades. E passado uns tempos, apeteceu-lhe brincar com o Pião de novo. Não tanto, como outrora, mas brincava ainda muito...quando lhe dava na gana. Qualquer criança cansa-se rápido, no entanto, e lá guardou o Pião de novo. Em vez de buscar a solidão, desta vez arranjou berlindes. E gostou muito deles, e pedia-me sempre para brincar com eles! E depois arranjou uma bola de futebol! E estávamos sempre a jogar.

O meu irmão cansou-se de novo...e fez birra, que não queria berlindes, que não queria a bola de futebol. Queria o Pião! E foi buscá-lo à arca das memórias.

O Pião estava velho, tinha marcas. Se o Pião fosse gente, seriam cicatrizes. Mas rodava. Rodava sempre e o meu irmão ficava feliz por brincar com ele.

Era das únicas brincadeiras em que eu não entrava, a do Pião. Só no início de tudo, quando a Mãe o trouxe. Agora só via. E não me importava muito, porque não sou de me importar com essas coisas.

E o meu irmão brincava com o Pião, brincava, e dizia que queria ser sempre criança, para brincar sempre com ele.

De novo, fartou-se. De novo, chamou outros brinquedos, que a Mãe lhe trouxe rapidamente. E o Pião, o seu brinquedo incansável, foi guardado na arca das memórias.

...

Não sei se o meu irmão cresceu.

Se alguma deixou de brincar com os carrinhos que descobriu depois, com os bonecos que descobriu depois, com os berlindes antigos... Talvez tenha crescido, aquela criança que, de tempos a tempos, queria o Pião, que ficava tonto de tantas voltas que dava à mão daquela criança caprichosa.

...

Lembro-me daquele Pião...Um dia estava a abrir a arca das memórias. E já lá não estava. Passei por lá umas vezes sem conta, e nunca mais o vi. E provavelmente o meu irmão também foi lá, e não o encontrou. E quando lá fomos os dois, não estava lá.

Os Piões fogem, quando rodam demais. Talvez tenha arranjado um adulto que brincasse com ele todos os dias. Sem o fulgor da juventude do meu irmão, mas com a constância do brincar adulto.

Porque se a vida dos Piões é rodar, que ao menos rodem todos os dias.

Velho de Alfama

30 agosto, 2009

Para os portugueses

Escrevo este texto a todos vós, eleitores no próximo escrutínio para a Assembleia da República, no dia 27 de Setembro. Nos últimos tempos, e também de futuro, tomei e tomarei contacto com todas as informações dos vários partidos políticos portugueses. De todos os partidos que até ao momento publicaram os seus programas de governo, li cada um com extrema atenção, para que qualquer juízo não fosse falhado ou injusto. Este texto é uma dissertação, o máximo completa, sobre muitos aspectos que me parecem úteis que todos os portugueses conheçam e que poderão ajudar a tomar uma posição equilibrada e de acordo com as convicções de cada um acerca do que é e será melhor para o nosso país. Os ataques são dirigidos ao PSD; porém, todos os argumentos que vos apresentarei serão acompanhados da respectiva justificação.

Em primeiro lugar, preciso de frisar que sou a primeira pessoa a concordar que um mundo governado por mulheres seria um mundo melhor na maior parte das questões: as mulheres, no seu geral, possuem uma sensibilidade e uma intuição mais vastas do que os homens, em temas como o ambiente, a família ou as dificuldades financeiras de algumas camadas da sociedade. Para os defensores desta teoria, em primeira análise, a líder do PSD pareceria a melhor figura em quem depositar o voto de confiança. No entanto, trata-se de uma mulher que foge aos requisitos que anteriormente apresentei. Senão vejamos:

· Manuela Ferreira Leite mostrou-se já contra a lei que obriga a igual representação parlamentar entre homens e mulheres, considerando que o país não necessita de uma maior representatividade de mulheres nos seus órgãos de soberania;

· Ferreira Leite apresentou já o seu desagrado, assim como concorda com o veto de Cavaco Silva, no que respeita à lei das uniões de facto: uma família deve, na sua opinião, durar do casamento até à morte, sem que duas pessoas se possam simplesmente juntar numa vida a dois sem burocracias suplementares;

· Ferreira Leite discorda, igualmente, da nova lei do divórcio e do aborto: na sua opinião de “mulher”, os casais que pretendem a separação ainda devem estar sujeitos a batalhas judiciais para repartir os bens, sacrificando um laço de amizade que poderia manter-se após o divórcio e condenando os filhos do casal a um sofrimento que pode, com a nova lei, ser mitigado;

· Por último, a líder do PSD julga que o endividamento externo se resolve com a diminuição dos subsídios, nomeadamente de desemprego, agravando as condições de vida de cada vez mais portugueses e portuguesas, em vez de, por exemplo, apostar nas energias renováveis, as quais evitariam as importações avultadas de petróleo e gás natural.

Em resumo, Manuela Ferreira Leite julga possível pôr termo a uma crise económica instalando, no seu lugar, uma crise social. A qualquer um creio que isto não parece viável, ainda mais se nos apercebermos de que as grandes fortunas continuam a surgir em Portugal, pelo que o dinheiro para resolver a crise económica poderia partir daqueles que o têm e não daqueles que nem emprego têm.

Recordemos um episódio histórico e a sua resolução para melhor entendermos a situação mundial da actualidade. A crise económica que mais se aproximou, nos seus contornos, àquela que hoje se vive foi a crise que se seguiu à crise bolsista de 1929. O fecho de fábricas conduziu a uma maré de desemprego; o desemprego diminuiu a procura de bens de consumo; a quebra da procura resultou em fecho de fábricas: um ciclo de agravamento sem saída fácil. Surpreendido com a situação, o presidente dos Estados Unidos da altura empreendeu um conjunto de medidas como as que Ferreira Leite propõe: redução do papel do Estado na economia, através da quebra dos subsídios, privatizações, assim como a suspensão das obras públicas em projecto. Na verdade, estas medidas conduziram a uma crise ainda mais profunda: a população americana viu-se desprovida dos apoios e das condições para sair da crise, o país viu-se a braços com uma enorme dificuldade de criar novos empregos e aumentar as produções, enquanto o Estado, cada vez menos interventivo, ia arrecadando dinheiro que para nada servia enquanto estivesse parado. O país parou: não havia dinheiro e, onde o havia, este não era movimentado. Ora, esta situação contornou-se apenas com a subida ao poder do presidente Roosevelt, que dirigiu medidas de nacionalizações, subsídios aos carenciados, a novas empresas, e também iniciou um regime de obras públicas que absorvia emprego e incentivava diversos motores da economia, ao mesmo tempo que criava as condições e infra-estruturas para maior crescimento económico no futuro, como se veio a verificar. Portanto, parece que só sairemos sãos desta crise mundial com políticas de maior abertura e investimentos, como a esquerda portuguesa (BE, CDU e PS) defende, em vez de cortes abusivos no papel do Estado, privatizando sectores essenciais da economia que deveriam ser de todos e não pertença dos grandes grupos económicos: sectores como a energia, as águas, a segurança social, a saúde e a educação.

Não se deixem enganar: a fuga a alguma má medida e mau projecto do governo PS não está no voto no PSD: para alguma coisa existem cinco, ou mais, partidos em Portugal. Se discorda com o regime de avaliação dos professores, não precisa de votar PSD; se discorda com o TGV, não precisa de votar PSD; assim como se concorda com os apoios sociais, com o investimento público e com novas leis sociais, não tem de votar PS. Mais de 30 anos de governos alternados destes dois partidos deveriam ter servido para a consciencialização dos portugueses. Os governantes apenas aprenderão a lição do nosso desagrado no momento em que se aperceberem de que os dois partidos maiores da política portuguesa têm, nas eleições que se seguem, menos votos do que em quaisquer eleições que tenham decorrido até à data.

Aproveitando a onda, permitam-me completar o raciocínio em relação à Câmara Municipal de Lisboa. Três medidas que Santana Lopes promete implementar caso vença as eleições autárquicas:

· Suspensão dos programas de requalificação urbana dos bairros históricos, como Alfama, Mouraria, Bairro Alto, Castelo ou Mouraria): o buraco do centro de Lisboa, cada vez mais deserto e sem oportunidades, poderá, com Santana Lopes, ver-se eternizado, para desgosto de todos os portugueses que ainda esperam ver estes bairros recuperados e com a aura de séculos passados;

· Suspensão das obras do Terreiro do Paço. Estas obras, das mais úteis que têm existido no nosso país, vêm fazer com que os esgotos de centenas de milhares de lisboetas não vão parar ao rio Tejo sem qualquer tratamento em ETAR’s. Santana Lopes promete cancelar estas obras, considerando-as inúteis e desestabilizadoras do trânsito na capital. Como se os automóveis fossem mais importantes do que o ambiente, numa cidade tão bem servida de transportes públicos como poucas outras na Europa;

· Por fim, construção de mais túneis para automóveis nas grandes avenidas de Lisboa. Lembram-se das obras do Marquês, de pouca utilidade, que sugou toneladas de euros de todos os portugueses e que contribuiu para o fecho de tantos negócios naquela zona de Lisboa… Pois bem, parece que, sob a alçada de uma administração Santana Lopes, vai poder reviver a sensação de uma Lisboa dos carros e endividada (ao mesmo tempo que alguém se sujeitará a levar com prédios de muitos séculos de idade na cabeça).

A decisão cabe a todos nós.
Camarada Fratírio Telmo

13 agosto, 2009

Matar o passado ou dar-lhe a mão

Esse tão insipente senhor da mais alta ambição política, de seu nome Santana Lopes, na actualidade um guerreiro empenhado na conquista e domínio eterno do lugar da presidência da nossa capital, prometeu-nos a todos já, no caso de vencer a tão aguardada eleição do poder local, esquecermos as esperanças trazidas ao longo dos anos e as quais víamos, nos tempos mais recentes, serem triunfadas para enorme alívio dos verdadeiros portugueses. Tudo em nome do problema central que o seu partido-cujo-nome-não-pode-pela-nossa-saúde-mental-ser-pronunciado tem tantas vezes evocado: o défice das contas públicas. Não me refiro ao geral das suas promessas absurdas e indignas de uma cidade como Lisboa, dona e senhora de uma imensidão de qualidades precisas e de problemas exactos que todos reconhecemos; refiro-me antes, e muito em particular, à questão sempre debatida da requalificação urbana.

A ninguém surpreende já a frustração dos bairros mais antigos da cidade de Lisboa: para a sentir e cheirar basta somente caminhar pelas ruas que herdámos da História. Evidentemente que, dependendo de cada sujeito individual, novas prioridades se sugerem: o caso muda de figura ao entendermos, muito facilmente, que uma personalidade da política não deve ser tomada por uma pessoa cujas convicções apresentam a mesma importância do que as das outras pessoas, pelo simples facto de que os políticos se sujeitam, no exercício das suas funções, a uma responsabilidade de que a generalidade das pessoas não sofre: aquele que vier a ser eleito presidente da autarquia lisboeta, imporá as suas ideias às pessoas que vivem na cidade, àquelas que usufruem da cidade e, importa nunca esquecer, à própria cidade, ao seu património e aos seus destinos. O centro da cidade de Lisboa morre a cada dia, morrendo consigo muito daquilo que é mais nosso. E, ao passo que Lisboa aumenta as funções em torno da segunda circular, ou em lugares dotados das mais modernas infraestruturas, como Benfica ou o Parque das Nações, a alma de Lisboa perde-se pela foz do Tejo, e aqueles que usam a cidade de Lisboa, usam-na hoje, em muitas das vezes, como qualquer europeu ou ocidental usa as suas cidades, e não tanto como um lisboeta usaria a Lisboa que é positivamente Lisboa.

É sabido que o Mundo se conduz com destino à homogeneidade sempre mais evidente: cada país se assemelha cada vez mais aos outros, partilhando ideias, culturas, línguas, instituições, moedas, e muito mais. E nesta cunjuntura, que considero alarmante em larga medida, as dissemelhanças que se mantêm entre os países continuam e continuarão a ser, e cada vez mais somente, as características do seu passado - o seu património e as suas tradições. O testemunho de que Lisboa é uma cidade portuguesa e a capital desse grande país é, e não pode ser outro, o ambiente dos bairros que Santana Lopes pretende arruinar. Por aqui se depreende, como encaixando peças de um enorme puzzle de complicações e dissimulações, o objectivo central das políticas e projectos daquele terrível partido (que deveria ser partido, do verbo partir): aproximar Portugal do mundo e da Europa com o auxílio das liberdades e vontades do liberalismo económico, fazendo dos portugueses meros cidadãos do mundo, os quais não devem ver em Portugal mais do que uma parte de um todo Mundo, igual a todas as outras ou ainda menor: menor porque se impõe erradicar-lhe as características que a tornam única.

Nesta questão está patente uma relevante marca cultural, pouco perceptível a muitos dos que leiam este texto - razão pela qual passo a descrevê-la. Necessitamos, para compreender esta marca cultural, de confrontar dois grupos de países: em primeiro lugar, reunimos Estados Unidos, Canadá, Escandinávia e Reino Unido, entre outros que agora pouco importam; em segundo lugar, reunimos os países do Sul da Europa (nos quais incluiremos o nosso) e os países ex-comunistas da Europa de Leste. O que, no que a este tema é remetido, distingue este dois grupos de países é o empenho da sua população na preservação do seu património histórico. Vejamos dois exemplos muito concretos: o centro da cidade de Nova Iorque (Manhattan) é onde predominam as construções mas modernas e altas de toda a cidade; em oposição, o centro de Lisboa é aquela zona da cidade ond se verificam construções mais antigas e com menos pisos, constrastando com zonas mais modernas e mais periféricas, como o Parque das Nações, Portela ou Telheiras. Concluímos assim que o primeiro grupo de países sempre deu prioridade à modernidade, condenando o património histórico: a cidade de Londres, que muitas vezes apelido de capital da Europa, é marcada pela persistência de monumentos históricos, palácios ou igrejas antigas, rodeadas de bairros modernos completamente equipados com tudo aquilo que a vida de hoje exige: os bairros históricos que encontramos em Portugal, Espanha, Itália e Europa de Leste, e até mesmo em França, não encontramos, porém, numa cidade tão ocidentalizada e americanizada como Londres. O Sul da Europa tende a preservar as zonas históricas intactas, mantendo todas as construções, no seu exterior, conforme elas foram edificadas. O Norte da Europa aceita a constante revitalização do centro das cidades através da substituição de construções mais antigas pelas construções mais modernas, conservando apenas os grandes espaços históricos de grande valor individual, como palácios, estátuas e edifícios religiosos. Ao lado deste texto coloco uma imagem da grande estação central de Nova Iorque, um testemunho de outros tempos, rodeada pelos mais modernos prédios. Anexo também uma imagem de um bairro histórico lisboeta onde verificamos a realidade contrária. Reforço então o que anteriorente afirmei: o intuito do horrível partido social democrata (que não é hoje social-democrata, mas sim liberalista) é aproximar Portugal dos Estados Unidos, mitigando aquilo que nos liga ao que sempre fomos com imenso orgulho. Se a sorte nos for avessa, em breve veremos irromper pelas alturas de Alfama uma grande torre de escritórios, com dezenas de pisos de estacionamento automóvel por baixo do solo, assim como as suas ruas, que sobreviveram ao terramoto de 1755, serão alargadas para o livre trânsito na cidade, destruindo todas as construções seculares que por nós são adoradas. E em breve, então, encontraremos um Rossio ladeado de edifícios de vidro, sendo que no centro se manterá sempre a estátua de um rei sobre uma enorme coluna, no futuro observando aquela cidade que já não consegue reconhecer.

A decisão de Lisboa permanecer, ao longos dos séculos, uma jóia intocada onde se reflecte o passado cabe aos lisboetas. Não deixem Lisboa desviar-se do seu caminho.
Camarada Fratírio Telmo

03 agosto, 2009

Em poucos segundos...

Porque me olhas assim? Quem és tu?


Larga-me! Porque me agarras?! Ai! Aleijas-me! PÁRA! Não tens o direito de… Ai, assim caiu! Não me beijes, que nojo!! Pára de… Não rasgues a… Larga as minhas m… Não! NÃO!!!!

AIII! Merda! Larga-me os pulsos… As minhas calças! Não! AII… Eu não queroooo!! Não!!! Deixa-me, não sou tua. Pára, por favor! POR FAVOR!!


Por favor…… Que acabe depressa. Que acabe depressa. Ai, Meu Deus, porquê?! PORQUÊ!! POR FAVOR QUE ACABE DEPRESSA! Por favor…… Quero voltar para a minha família… por favoorrrr!

Acabou… VAI-TE! Já tiveste o que querias! Já me tiveste a mim… Vai-te por favor! Deixa-me sozinha…

Sinto-me tão suja… Terá sido culpa minha? Só pode ter sido. Terei provocado isto? Eu cedi, deixei-o… Não podia fazer nada. Se tivesse mais tapada, se calhar… Odeio a minha roupa! Merda de roupa!! Se eu fosse mais forte, teria… AI, ODEIO-ME!! ODEIO-ME TANTOOO!!!!

Ai, que vergonha! Vá… Não se passou nada… NÃO OLHEM PARA MIM!! Que vergonha… Deixem-me! Não, não tenho nada. Não se passou nada! Não se passou nada…

Menina Violada

21 julho, 2009

O Arco-Iris

Houve uma altura na minha vida em que quis caminhar sobre o arco-iris. Sabia lá que aquilo era apenas luz impossível de tocar...

Estranho que o sinal de bonança e esperança maior, este espectro de todas as cores, não seja susceptível de toque. Devia poder-se tocar naquilo que retira a chuva dos nossos dias.

Hoje olho pela minha janela, e limito-me a vê-lo de vez em quando, depois das chuvas maiores.
Apesar de tudo, sei que, mesmo que caiam lágrimas dos céus, não haverá dilúvio.
Velho de Alfama

19 julho, 2009

A Tela

Já fiz muita coisa na vida. Felizmente tive pais que me dessem o que precisava quando era novo. Quando comecei a crescer, eu me sustentava. E nunca achei que o lazer fosse algo de ricos para ricos, ou apenas para gente ociosa. A Arte é das coisas que me fascinou sempre.

A certa altura quis pintar. Ainda trabalhei uns meses para comprar a minha primeira tela em branco, que esperava ansiosamente que eu a pintasse. As tintas já eu as tinha, porque já se nasce com elas.

Aluguei um atelier perto da minha casa, em Alfama. Era uma casinha por fora branca, por dentro igual ao que era cá fora. Estava vazia, não custou nada sequer, o senhorio ofereceu-ma enquanto precisasse dela, disse que podia fazer tudo o que quisesse lá, tinha liberdade. Levei a tela, levei as tintas, e comecei a fazer uns riscos na tela. O sonho estava a concretizar-se. Tanto tempo à espera de poder dar um ar de graça àquela tela que eu havera obtido, e que precisava de cor.
Porém, uns riscos depois, estava farto. A tela ficava cada vez mais bela, mas eu não estava satisfeito. Então, olhei em volta, e vi uma parede branca.

A tela podia esperar. Ela nunca fugiria! E então comecei a pintar a parede. Por lá fiz os mais belos desenhos da minha vida, empreguei toda a minha Arte naquelas paredes nuas, que não sendo minhas (era alugado, o improvisado atelier), me davam mais pulso venéreo para pintar. Para escrever com o pincel.

Passado um tempo, já todos aqueles cantos e recantos da antiga morada de alguém estavam coloridos e belos e cheios de Arte. Pintei também o chão. E a tela aguardava, sempre me observando, sempre lá para quando eu a quisesse pintar.

Eu dormia na minha casa e uma noite, quando eu estava longe do atelier, pensando se pintaria também o tecto e o chão deste, o atelier ruiu. Desabou. Não sei porquê, a noite estava calma.
Quando lá cheguei de manhã, aquelas paredes que eu pintava com tanta Arte eram pó, e não havia mais cor, só cinzento. Era no meio das ruínas que estavam os únicos pingos de cor da cena. Os pequenos riscos que eu tinha feito na tela. A tela permanecia lá, fiel a mim, sempre à minha espera. Peguei nela. Quis fugir daquele sítio, e andei uns metros até encontrar o conforto da minha casa. Coloquei a tela na minha salinha, mesmo ao lado do sofá onde em me sentava sempre. E ela ficou lá sempre à espera que eu a pintasse. Mas eu nunca pintei. De vez em quando pintava em madeira, pintava onde fosse que pintasse. Era a minha Arte, pintar no alheio.

Mas o meu Amor era aquela tela. Se calhar foi por isso que nunca pintei nela, pelo menos mais que alguns riscos coloridos.

Agora que sou velho e a Arte de pintar se foi, arrependo-me de nunca ter pintado aquela tela, que sempre esperou pela minha pincelada dedicada. Eu apenas me dediquei a guardá-la na minha casa, mas a cor que predominou nela foi sempre o branco. Não soube canalizar a minha Arte. Mas no fundo, ninguém sabe gerir a Arte como deve ser. O Amor sabe-se sempre, a Arte não.
Velho de Alfama

18 julho, 2009

Marco

Impressionante. Verdadeiramente impressionante…
Não tenho melhores palavras para descrever esta paisagem. As montanhas que me rodeiam parecem saídas de postais. O verde que se encontra ao meu nível e abaixo de mim, com as ervas rastejantes e as árvores ondulantes. E tanto verde diferente, a esvoaçar e a ondular! O ocasional castanho das típicas casas alpinas, nas suas pequenas aldeias ou rara casinha isolada… Ah! E o som das cascatas, que faz a minha alma voar!
O branco que sobressai por cima de mim é simplesmente magnífico! Chega a ter formas, como borboletas. Enquanto a própria montanha desafia o céu!
O Monte Branco, lá na sua altitude, reclama o seu título de maior gigante europeu. O nosso Atlas.
Seria de esperar que o avassalador peso das montanhas que me rodeiam me caísse nos ombros e me vergasse, mas não, faz-me sentir mais livre. Sinto que sou o Rei do Mundo, que sou imortal e que tudo posso! Verdadeiramente impressionante…
Faz-me sentir mais intimo comigo mesmo. Eu, Marco, com os meus 24 anos, meio Inglês meio Italiano, eterno viajante do Mundo!
Mas quero descobrir mais! Aqui já vi o que tinha a ver. Hei-de voltar, os Alpes Italianos são algo que merece que volte. Mas agora não, agora vou descobrir mais.
Quero ir descobrir Portugal, porque não? Mal sei dizer uma frase em Português mas a curiosidade espicaça-me! Como será?
Sim. Irei amanhã mesmo comprar o bilhete para Lisboa!

Só passou uma semana e já começo a perceber algum Português. O saber Italiano é capaz de ter ajudado um pouco…
Hoje aventurei-me e vim “beber a bica à Brasileira”. Não fazia ideia do que era mas ouvi um Português falar nisso perto do hotel, e pareceu-me boa ideia experimentar algo mais Português. Claro que tive de pedir indicações sobre como o fazer e o que era. Parece que “bica” é café! E esta?
“A Brasileira” tem um ambiente mais sério do que o que eu gosto, mas mais simpático que o hotel. Tem uma estátua de um senhor à porta, que pelo que percebi é um escritor Português. “Fernando Pessoa”, parece-me. Pergunto-me o que terá a ver com “A Brasileira”…
Bem, mas esta zona é linda! Chama-se “baixa”, e é encantadora! Tem uma rua principal, “Rua Augusta” segundo o que li, que é deslumbrante. Os edifícios são claramente antigos, mas muito bem arranjadinhos. Os cafés são giríssimos, e gosto muito dos artistas que há aqui!
Cheguei a ver o espectáculo de um mágico! Não era Português, mas ainda assim foi muito giro e muita gente se reuniu a ver.
Já decidi e amanhã vou explorar melhor esta zona. Que descoberta magnifica!
Marco

15 julho, 2009

Cumprir os desejos

Obrigado por me teres chamado. Só o chamamento leva à ressurreição de um homem que vive através dos outros, sem deixar de ser ele mesmo. E é sempre um prazer ouvir esta voz que pede ajuda, meu pupilo, meu mestre.

Conheci-te um dia por acaso, quando escolheste como teu caminho a nobre arte do teatro. E fui parar às tuas mãos. Que nem barro, moldaste-me a ti. Mas não me mudaste. Quem te mudou fui eu.

Sei-te grato pelos meus ensinamentos. Aliás, que mais poderia eu fazer senão ensinar-te. Nasci há mais de um século atrás. É minha obrigação ter alguma sabedoria de velho. Porém não sou como os outros velhos. O renascer em ti rejuvenesceu-me. Fisicamente, psicologicamente, almamente. Espiritualmente não. Isso é coisa de gente morta.
Este renovar dos poros, do sangue e das ideias transportou-me do 19º século para este actual. Não fazia sentido um renascido pelo palco se manter em tempos tão antigos. Deixem-me ser agora, por favor. Quero ter as palavras do hoje, ver o mundo de hoje, ser hoje. O passado é apenas exemplo e experiência, não realidade. E nisto te agradeço, que me fazes viver mais que um ser humano comum. Sou um privilegiado. Tanto enquanto ser humano que muito dura, como enquanto personagem, que me trataste como nenhuma outra. Talvez não tenha sido a tua maior realização, mas fui o teu maior passo.

Passeemos juntos. Aprecio tanto trocar saberes contigo. E agora que precisas de mim, aqui estou. Sou como o génio da lâmpada. Só que não concedo desejos. Tenho-os.

E é isso que tanto me aproxima de ti. Somos gente com desejo de boa mudança e permanência não tola, tudo dirigido para o cenário utópico da vida e sociedade. Queremos que isto seja perfeito, quando a imperfeição é a nossa cicatriz. Cicatriz que nem as aparências curam (e acredita que tanto no meu século, como no teu, estas existiram e existem, respectivamente. As pessoas não mudam.). Cicatriz incurável, mas que tem de ser desinfectada.

Lutemos juntos. Através das palavras e acções. Do pensamento. Através do mais que podemos. E por favor, junta os teus a esta batalha pseudo-intelectual e prática , que eu não posso juntar os meus. Os antepassados do hoje estão mortos. E antes que isso a nós nos aconteça, façamos algo juntos.

A morte chega cedo e a vida é breve. E tu não és como eu, uma personagem de teatro pronta a ser ressuscitada por um actor amador dedicado. És efémero.

Chegou a hora, meu pupilo, meu mestre.

Leonardo Goring

O Horror

Mato-os?

Mutilo-os, dilacero-os, firo-os, mortifico-os, esgano-os, esventro-os, desmembro-os, ABATO-OS como os animais que são?! Prostro-os, amarro-os, amordaço-os, enforco-os, bato-lhes, maltrato-os, corto-os, arranco-lhes as unhas, queimo-os, parto-lhes tudo o que há para partir, sangro-os até ficarem EXANGUES?!


Não.

Porquê?

É crime.

E o que eles fizeram não?

Sim.

Então? Mutilo-me? Descarrego na primeira pessoa que aparecer?!

Não são os culpados.

Então que faço desta ira que se apodera de mim ao pensar no maior crime que existe? Roubaram a inocência, a infância, a virgindade, o amor! A barbaridade dos seus actos não deixa qualquer espaço a perdão!

Então porque aparecem tantos casos assim? Que aconteceu à bondade e à humanidade do ser humano? Como pode Deus ter deixado espaço no Homem para tais aberrações acontecerem?

Como pode a pedofilia ser uma realidade? Como pode na maioria dos casos o culpado não ser punido devidamente?

É impressionante a forma como me contorço, como as minhas veias e músculos ficam salientes, como salivo. A minha face: contorcida num espasmo de horror, passando rapidamente para uma expressão animalesca. Os meus olhos: vermelhos. As minhas sobrancelhas: apertadas. Os lábios: arreganhados, mostrando ameaçadoramente os dentes. As narinas: dilatadas, permitindo uma melhor oxigenação, pronto para o ataque! A minha alma: PURA RAIVA!

Mas que posso fazer? Meu Deus, que posso fazer?!

Sou só eu e o meu charuto. Nestas alturas nem o meu gato se aproxima de mim.

Só eu e o meu charuto…

Virgílio Corvo

14 julho, 2009

Virgílio Corvo

Encontro-me actualmente sentado na minha poltrona e só encontro a saúde mental quando fumo o meu charuto cubano. Até ao momento em que a doce névoa branca me cobre o rosto, sinto-me revoltado e ateado de uma raiva que me transcende, que engloba todo o antro de porcos imundos que só querem encher os seus bolsos e a vagina de outrem. Sinto os meus esforços de contacto humano como vãos e sem sentido, quando nada me responde e me respeita, e me cospem e atiram para uma valeta imunda, repleta de vermes rastejantes que consomem abruptamente o cadáver de outro sem-vida. Eu sou Virgílio Corvo, se bem que nestas alturas, quem pode dizer com certeza quem é?

O meu franzino ser nauseado fica ao relembrar-se de todas as franquias que se achegam aos afortunados que paupérrimos de espírito são, e que por missarem frequentemente sofrem de grave caso de metamorfopsia, pois ao se verem ao espelho pensam ver o Papa. Pecam, confessam, e livres de culpa estão. Enojo-me com tais Pilates! A bílis que por mim se liberta regozija com sentimentos tais e todo o corpo me arde, contorcendo-me e fechando os olhos procurando esquecer-me de tais males. Quando os abro, no mesmo sítio me encontro e o fragor que ininterruptamente me atinge liberta pensamentos pecaminosamente iracundos na minha alma. Para o quinto círculo do Inferno de Dante irei, ocorre-me. Mas de facto poucos serão os círculos dos quais não sou merecedor…

Sou descabelado, desconjuntado, descrente, desconcorde, desconsolado, mas nunca desconcordante ou desconexo! Tudo sou, mas cumpro o que sou e o que o que acredito me ordena ser. Não posso com os energúmenos que apelam a doutrinas igualitárias, enquanto agem de forma elitista! Não nos encontramos num território irredento, sabemos bem as fronteiras que delimitam o racional, e as que delimitam o humano, e sabemos bem de que lado da fronteira se encontram estas atitudes: do racional inumano!

Eles querem tudo! Eles comem tudo! Eles comem o que defecam para que nada sobre para outros! E nem capazes de o admitir são… Escondem-se atrás de Quem-Tudo-Pode e confessam-lhes os seus pecados, sentindo-se seguros, mesmo quando o seu Livro Sagrado condena às mais vivas chamas do Inferno aquilo que eles personificam.

Por não compreender o incompreensível execrando na vida sou. Tanto tenho a dizer, tanto que quero falar, que esta não será a ultima vez que ouvirão a minha inaudível voz!
Não pretendendo exacerbar opiniões, mas alertar para o intolerável, esta é a minha exegese.

Virgílio Corvo