09 setembro, 2009

O Pião

Já passaram muitos anos. O meu irmão ainda me visita quase todos os dias.

Este meu irmão era o meu parceiro na infância. Eu era mais velho, cuidava dele. Ele estava protegido. Eu estava feliz.

Ele era muito despassarado!

Aluado, aluado, era uma criança que podia ir contra as paredes, que não dava por isso. Mas ele gostava de brincar, e apesar de ser a criança de cabeça na Lua que era, eu brincava sempre com ele. E como pessoa consciente que era, que sempre reflecti muito, às vezes pausava a brincadeira para observá-lo apenas, conhecer este meu irmão.

...

Ele tinha um Pião. Adorava-o! No dia em que a Mãe o trouxe, ele só soube brincar com ele...e brincou por semanas a fio com o Pião. Porém, um dia cansou-se desta sua fonte de felicidade, e isolou-se. Guardou o Pião na arca das memórias, e deixou-se de distracções. A única era eu.

Uma criança...sem brinquedos, só comigo, o seu irmão.

Mas era português, e até as crianças têm saudades. E passado uns tempos, apeteceu-lhe brincar com o Pião de novo. Não tanto, como outrora, mas brincava ainda muito...quando lhe dava na gana. Qualquer criança cansa-se rápido, no entanto, e lá guardou o Pião de novo. Em vez de buscar a solidão, desta vez arranjou berlindes. E gostou muito deles, e pedia-me sempre para brincar com eles! E depois arranjou uma bola de futebol! E estávamos sempre a jogar.

O meu irmão cansou-se de novo...e fez birra, que não queria berlindes, que não queria a bola de futebol. Queria o Pião! E foi buscá-lo à arca das memórias.

O Pião estava velho, tinha marcas. Se o Pião fosse gente, seriam cicatrizes. Mas rodava. Rodava sempre e o meu irmão ficava feliz por brincar com ele.

Era das únicas brincadeiras em que eu não entrava, a do Pião. Só no início de tudo, quando a Mãe o trouxe. Agora só via. E não me importava muito, porque não sou de me importar com essas coisas.

E o meu irmão brincava com o Pião, brincava, e dizia que queria ser sempre criança, para brincar sempre com ele.

De novo, fartou-se. De novo, chamou outros brinquedos, que a Mãe lhe trouxe rapidamente. E o Pião, o seu brinquedo incansável, foi guardado na arca das memórias.

...

Não sei se o meu irmão cresceu.

Se alguma deixou de brincar com os carrinhos que descobriu depois, com os bonecos que descobriu depois, com os berlindes antigos... Talvez tenha crescido, aquela criança que, de tempos a tempos, queria o Pião, que ficava tonto de tantas voltas que dava à mão daquela criança caprichosa.

...

Lembro-me daquele Pião...Um dia estava a abrir a arca das memórias. E já lá não estava. Passei por lá umas vezes sem conta, e nunca mais o vi. E provavelmente o meu irmão também foi lá, e não o encontrou. E quando lá fomos os dois, não estava lá.

Os Piões fogem, quando rodam demais. Talvez tenha arranjado um adulto que brincasse com ele todos os dias. Sem o fulgor da juventude do meu irmão, mas com a constância do brincar adulto.

Porque se a vida dos Piões é rodar, que ao menos rodem todos os dias.

Velho de Alfama